Complicar a descomplicação

José Meireles Graça                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       .

Para fazer melhor que a longa teoria de ministros da Justiça que deixaram um rasto, no melhor dos casos, de inutilidade e, no pior, de reformas desastradas, basta pegar no objecto por outra ponta.

Francisca van Dunem deu há tempos uma entrevista e terá sido a única vez em que disse alguma coisa que não fosse uma banalidade: o cargo de ministra teve para ela (e, somos levados a acreditar, para o marido, conhecido advogado), uma pesada factura moral e financeira. A declaração é ingénua e, no caso dela, quase cómica, tem precedentes (em tempos Cavaco também se queixou da pitança que recebia) mas poderia conter, para outras personalidades, alguma verdade: não falta quem se tenha recusado a ser ministro ou deputado porque com isso teria prejuízo, e são alguns os políticos que caíram fora do bilhar do poder descobrindo que investiram anos da sua vida numa carreira que, para quem não for corrupto, nem tiver um lugar cativo à sua espera, nem faça parte da quadrilha das portas giratórias do poder para o tacho, pode ir dar a um beco – um assunto de que não me vou ocupar aqui.

Das bem fornidas coudelarias do PS e adjacências saiu outra ministra, Catarina Sarmento e Castro. E esta senhora foi a Ourém para um evento e fez um discurso onde, entre outras coisas, disse: “Só uma justiça mais acessível e mais próxima, com uma linguagem mais simples, mais clara, mais transparente, ajudará a evitar controvérsias e chegar à compreensão das pessoas”.

A afirmação tem um aspecto positivo e vários negativos. O positivo é que é uma censura aos juízes. As sentenças são com frequência prolixas, gongóricas e pedantes, e talvez os meritíssimos fizessem bem em triturar menos as circunvoluções cerebrais para produzirem peças que imaginam literárias, com o intuito de impressionar advogados e colegas, e antes cultivassem o amor do sucinto: os factos apurados são estes e o direito que se lhes aplica é aquele, a parte que decai não tem razão por isto e aquilo – um discurso ático se puderem, cru no caso do talento não abundar.

A ministra não disse, porém, como se muda a tradição, deixando pairar a suspeita de que não faz a menor ideia. Os magistrados da opinião que, de longe em longe, referem a Justiça, como António Barreto, crucificam-na; ninguém, tenha a audiência que tiver, ousa dizer que naquele reino as coisas vão bem, e pelo contrário há um consenso persistente de que vão muito mal; a opinião pública sabe que o sistema (que inclui, além dos tribunais, as polícias, a Autoridade Tributária e outras Autoridades, bem como a magistratura do Ministério Público), acusa muito, mói bastante, arrasta os pés e condena pouco porque o que chega à fase de julgamento é inconsistente; nos tribunais administrativos e fiscais toma-se como normal, e uma fatalidade impossível de resolver, que se espere anos, quando não mais de uma década, por decisões cuja complexidade é nula – e ainda que o não fosse; e, como se tudo isto fosse pouco, uma percentagem abracadabrante de juízes acha que alguns seus colegas são corruptos – nada que há muito não se dissesse à boca pequena.

Embora tenha referido incidentalmente a Justiça penal, desses problemas não curo aqui que estou com falta de vagar, senão para dizer que o caso Sócrates prova que o sistema seria de gargalhada, se não fosse para chorar. Regresso aos outros.

A recomendação de decisões mais próximas não é isenta de perigos: a juridicidade desenvolveu um jargão próprio que contém decerto inutilidades para impressionar pategos e analfabetos (processo que aliás começa nas faculdades de Direito com, por exemplo, o recurso a locuções latinas perfeitamente traduzíveis, a utilizar por quem não sabe Latim mas sabe fingir), mas isso não quer dizer que as sentenças tenham de ser acessíveis às pessoas cujo domínio da expressão escrita não vai além da compreensão dos jornais desportivos (e da maior parte dos outros, já agora). O rigor das decisões passa também pelo rigor na utilização de palavras com um significado jurídico preciso; e lá onde a decisão parece obscura há o advogado para explicar.

De modo que hierarquizemos as coisas, o que Catarina não fez: o que o cidadão sobretudo quer é rapidez, não necessariamente que ao cabo de anos venha a sentença redigida de modo a que ele a possa entender. A “acessibilidade” que interessa tem sobretudo a ver com as custas demenciais e a “linguagem mais simples” só interessaria se fizesse perder menos tempo ao juiz, e só nessa medida.

Os problemas da justiça criminal não são os mesmos da cível, e a administrativa e fiscal é ainda diferente. Nesta última o instituto falimentar, o de recuperação de empresas, os tribunais de comércio, os agentes de execução, que são depositários de poderes públicos, tudo constitui uma nebulosa onde a inépcia do legislador, o atraso indesculpável e sistemático, os abusos sortidos, são uma escara no interesse público e na saúde da economia, que só não escandaliza tanto como outros desastres porque afecta menos pessoas, tendo portanto menos visibilidade; e da panóplia de recursos para a defesa contra abusos da administração fiscal nem é bom falar porque o Estado que aí vigora não é o de Direito, nem é inocente a falta de quadros e meios nos tribunais respectivos, aí sim reais, e onde o Estado não é qualificado como réu, mas deveria.

Nada disto é novo. Mas não vale a pena pedir soluções aos magistrados judiciais, e menos ainda às organizações sindicais da magistratura (cuja existência, aliás, nem sequer devia ser permitida): dirão que o problema não é decidirem pouco e tarde, é os advogados atazanarem[1]nos com incidentes e recursos, para além da falta de meios. Nem adianta falar com funcionários judiciais porque não conseguem dar vazão a tanto trabalho, estão mal pagos e aliás têm falta de meios. Nem ao Observatório Permanente da Justiça Portuguesa porque está lá o Professor Boaventura e portanto o asneirol é garantido, e além do mais tem falta de meios. Nem aos juristas porque a AR está cheia deles, o ministério também, e os resultados são o que se vê.

Eu discursava pouco (para estas partes gagas institucionais podes – o tutear não é falta de respeito, é um privilégio da idade – despachar um ajudante, ele que diga qualquer coisa), ouvia muito, incluindo alguns estrangeirados, e arranjava um ou mais tribunais cujos magistrados e funcionários anuíssem à presença de empresas de organização e métodos que ao fim de certo tempo (bastante) produzissem um relatório. Não para fazer sangue. Para que quem tem o olhar virgem veja o que os mergulhados no lodaçal não veem. Depois ia meditar e discutir. E, é claro, aquelas empresas não poderiam ter sido enjorcadas há pouco tempo por um socialista dinâmico e as estrangeiras não seriam excluídas.

Isso chegava para reformar a Justiça? Não. Mas pior não ficava. E depois para fazer melhor que a longa teoria de ministros da Justiça que deixaram um rasto, no melhor dos casos, de inutilidade e, no pior, de reformas desastradas, basta pegar no objecto por outra ponta.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2022/11/11, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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