Habemus Papam

Abel Tavares                                                                                        .

Não é a Doutrina que afasta as pessoas — é a sua ausência. Igrejas que se diluem no mundo, desaparecem. Igrejas fiéis ao Evangelho, mesmo em contracorrente, resistem e frutificam.

A Sé está vacante… mas não a de Roma.

Desde janeiro que a Sé de Cantuária — liderança simbólica da Comunhão Anglicana — permanece vazia. Já lá vão quase seis meses sem Arcebispo, e ninguém parece notar. Nem se interroga, nem se incomoda. Nem mesmo entre os anglicanos, que são oficialmente 26 milhões em todo o mundo.

Não há data, nem candidatos, nem expectativa. O silêncio não é apenas institucional — é sintomático. Porque quando uma instituição deixa de liderar, de ensinar e de acreditar, a sua ausência deixa de ser sentida. Dissolve-se no mundo e, com ele, na irrelevância.

E Roma?

Quando, há poucas semanas, morreu o Papa Francisco — na segunda-feira seguinte ao Domingo de Páscoa — o mundo parou. O luto foi global. As televisões ligaram-se ao Vaticano. As redes sociais silenciaram-se. As câmaras fixaram a chaminé da Capela Sistina. E quando se ouviu o Habemus Papam, esse anúncio antigo e solene voltou a fazer ecoar um arrepio de eternidade num mundo cínico e distraído.

Com a eleição de Leão XIV, a sucessão papal foi não apenas rápida, mas vivida com intensidade — por fiéis e por não-crentes, por católicos, curiosos, críticos e simpatizantes. Porque, goste-se ou não, a Igreja de Roma continua a ser a única referência religiosa global com doutrina, autoridade e missão universal.

E a Igreja Anglicana?

Onde está? Na irrelevância. Mesmo antes da vacância, a sua liderança era já um ornamento protocolar. A monarquia britânica, formalmente cabeça da Igreja, interessa-se por religião apenas quando há coroações, casamentos ou sessões fotográficas para as revistas.

O Rei Carlos III — hoje Defensor da Fé, título atribuído a Henrique VIII pelo Papa Leão X em 1521, e mantido mesmo depois do cisma — celebrou recentemente o início do Ramadão no Castelo de Windsor ao som de cânticos islâmicos. Uma cena que poderia figurar no romance Submissão, de Michel Houellebecq. Mas é real. Tragicamente real.

Na ânsia de parecer relevante, a Igreja Anglicana embarcou no comboio do progressismo cultural. E descarrilou. O que começa torto, muitas vezes, não se endireita. Desde Henrique VIII, teve o poder do seu lado; mas, à medida que a monarquia se foi afastando da fé, a igreja também se eclipsou. O que resta é uma instituição moldada pelas modas, desligada do transcendente, presa ao espírito do tempo.

Ordenou clero LGBT, celebrou casamentos entre pessoas do mesmo sexo, reescreveu orações, adotou pronomes neutros, reformulou rituais para agradar ao mundo. A cada concessão, perdeu fiéis. A cada gesto de adaptação cultural, esvaziou as igrejas. Tentou ser moderna — tornou-se supérflua.

Os números não mentem: em 1980, cerca de 11% dos ingleses assistiam regularmente ao culto dominical da Igreja Anglicana. Em 2022, eram menos de 1,7%. Segundo dados da própria Church of England, mais de metade dos praticantes desapareceram desde o ano 2000.

Por oposição, apesar das crises internas, das tensões doutrinárias e das pressões culturais, a Igreja Católica continua viva — e em crescimento. Em 1980, havia 757 milhões de católicos. Hoje são 1,4 mil milhões. Em países como Polónia, Filipinas, México, Brasil ou Nigéria, o catolicismo continua vibrante. E mesmo no Ocidente secularizado, há sinais de renascimento — sobretudo entre os jovens. Em França, nos EUA, no Reino Unido, milhares redescobrem a fé. E não é por compromissos mornos, mas por um encontro com a Verdade.

Este contraste prova que não é a doutrina que afasta as pessoas — é a sua ausência. Igrejas que se diluem no mundo, desaparecem. Igrejas fiéis ao Evangelho, mesmo em contracorrente, resistem e frutificam. O mundo não precisa de eco — precisa de luz.

O Papa não é um gestor, não é Francisco II, conservador ou progressista. É o sucessor de Pedro. Não responde a inquéritos, a editoriais ou a grupos de pressão. Responde a Cristo. E é isso que desconcerta o mundo — e dá paz aos fiéis.

O escândalo não é haver celibato ou ausência de “bispas”. O escândalo — e milagre — é que, na contemporaneidade cada vez mais secular e de laicismo radical, ainda há um Papa com autoridade, que com clareza e sem tibiezas: fala de vida eterna, céu, inferno; pecado, graça, misericórdia, justiça, a verdade do Evangelho e no encontro com Jesus Cristo Salvador.

Enquanto a Igreja Anglicana celebra o “mês do orgulho” e pendura bandeiras LGBT — fazendo da celebração de um pecado mortal um “gesto pastoral” — Roma mantém-se como bastião da fé apostólica. Quando o Papa fala — ou morre — o mundo escuta. Porque ali está uma voz firme, numa instituição que não nasceu de homens, mas da promessa de Cristo.

“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.”

Não há vácuo em Roma. Porque aquela Sé é sustentada por algo maior do que votos, política ou relevância mediática: é sustentada por uma promessa divina, independentemente de quais sejam os interesses de bastidores de dimensão política.

Chesterton disse-o com genialidade: “O Cristianismo morreu muitas vezes e voltou à vida; porque tinha um Deus que conhecia o caminho para sair do túmulo.” ( O Homem Eterno 1925)

Assim, a Igreja não sobrevive, ressuscita. Sempre. Ao longo da história, enfrentou várias mortes anunciadas. Ou seja, a Igreja pode sempre ressurgir de situações de morte porque Cristo próprio venceu a morte. Chesterton considera isto como um cumprimento contínuo da promessa de que Deus protegerá a Sua Igreja. Para além do fundamento teológico, Chesterton destaca também a força do testemunho histórico de contínua existência da Igreja. Ele fala, de cinco momentos históricos de quase-morte do cristianismo na história — momentos em que tudo parecia perdido e, no entanto, a Igreja voltou a erguer-se:

A crise ariana (séc. IV), as heresias medievais (sécs. XII–XIII), o ceticismo renascentista (sécs. XV–XVI), o iluminismo e o racionalismo de Voltaire (séc. XVIII), o cientificismo materialista moderno (sécs. XIX–XX).

Em todos esses momentos, parecia o fim. Mas a Igreja voltou a levantar-se. Porque a sua força não é humana — é sobrenatural. Chesterton resume este fenómeno numa frase lapidar: “Uma coisa morta pode seguir a corrente, mas só uma coisa viva pode ir contra ela.” A Igreja não é um fóssil, perdida no passado — é um organismo vivo. Se fosse apenas um produto de uma cultura longínqua do passado, já teria há muito desaparecido. Mas a sua capacidade de nadar contra a corrente, de florescer onde parecia haver apenas morte, revela uma vitalidade inexplicável.

O Coliseu é uma ruína. O túmulo de Pedro continua a resplandecer. Ali está o novo Papa. E, com ele, a promessa que atravessa os séculos. Hoje, vive mais um renascimento.

Em diversas partes do mundo, a fé católica vive um renascimento surpreendente, especialmente entre os jovens, contrariando as tendências de secularização. Em 2025, a França registou 10.384 batismos de adultos na Vigília Pascal — o maior número em mais de 20 anos e um aumento de 45% face a 2024 — sendo que 42% dos catecúmenos têm entre 18 e 25 anos. Nos Estados Unidos, dioceses como Fort Worth reportaram um crescimento de até 72% nas conversões entre 2023 e 2024, impulsionado por jovens atraídos pela tradição, profundidade e reverência do catolicismo. Já na Coreia do Sul, onde os católicos representam 11,3% da população (quase 6 milhões de pessoas) e o país atravessa um colapso demográfico sem precedentes (com a menor taxa de fertilidade do mundo: 0,72), a Igreja Católica continua a crescer: foram mais de 58.000 batismos em 2024, um aumento de 13,7% em relação ao ano anterior, representando um salto de 1.200% em 50 anos. Este dinamismo espiritual, num país onde tudo parece retrair-se — da natalidade à esperança no futuro —, é um testemunho poderoso do apelo universal, contracultural e perene da fé católica — não apenas pela estética, mas pela Verdade, uma redescoberta da fé como âncora contra o vazio do hedonismo, a tirania do relativismo e a ausência de raízes do secularismo.

Contra todas as expectativas, a Igreja Católica continua viva e a gerar vida nova. E nesta vida nova, o que esperar do Papa Leão XIV? Até ver, pelo seu percurso passado, história de vida e intervenções como Sumo Pontífice uma síntese viva dos seus predecessores: de Francisco, herda a proximidade pastoral, espírito e desejo de uma igreja missionária e em caminho, de Bento XVI, a profundidade doutrinal, a lucidez teológica. De João Paulo II, a aura e firmeza moral. E, como o Leão XIII da Rerum Novarum, assume a proximidade com o mundo moderno na defesa corajosa da doutrina social da igreja: a justiça social  e da dignidade humana em tempo marcados por guerras, ideologias, avanços tecnológicos e caldos culturais.

Sob o lema In uno illo unum, Leão XIV quererá relembrar que a unidade da Igreja só é possível na fidelidade a Cristo. E por isso — em 2025 como em 1525 ou em 325 — Roma continua a contar. Porque Pedro ainda está lá.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/05/23, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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