O Ladrão, o Poeta e o Pinguim

Carlos M. Fernandes                                                                                                                                             .

Na iminência da morte, Alexander reconcilia-se com a vida e com os outros, enquanto a urgência do suicídio se desvanece nessa religação com a beleza das trivialidades terrenas.

As coisas do espírito não estão acessíveis à dimensão material. Todavia, os assuntos do mundo também usam ser estranhos ao espírito. A alienação, conceito esquivo cujo significado varia através da história e das culturas, é indissociável da fractura entre os domínios metafísico e fenomenal – domínios opostos e ao mesmo tempo complementares, como o dia e a noite. O tópico não é de todo trivial: desfecho lógico do niilismo, a alienação pode também ser, na acepção de esquecimento da realidade, uma resposta visceral, acaso libertária, à devastação causada pelo império niilista e pelos «valores» que celebram as competências especializadas e o sucesso tangível. Sem quaisquer pretensões programáticas ou conceptuais, gostaria de, nas linhas que se seguem, abordar estas questões mediante o cinema e a literatura.

Michel LaSalle, o carteirista de Robert Bresson (Pickpocket, 1959), é um alienado que encontra na delinquência o único antídoto para o tédio. Michel rouba para sentir, para, por um momento que seja, ligar-se à realidade e entrar na corrente do quotidiano. Ainda que inspirado no Raskolnikov de Crime e Castigo (Dostoievski, 1866), arquétipo do anti-herói niilista, é o Mersault de Camus (O Estrangeiro, 1942) que às vezes nos vem à memória quando acompanhamos a desagregação de Michel, nomeadamente na relação com a mãe, a mãe que ele não quer ver, mas que diz amar mais do que a ele próprio – anúncio de valor questionável, pois é proferido por alguém sem qualquer estima por si próprio. Sem padrões morais sólidos, Michel é o destinatário perfeito das imagens mais sombrias que medram na retórica séria de Nietszche.

Com a ajuda de dois profissionais, Michel refina a arte do furto e triunfa no submundo parisiense. A dada altura, acossado pela polícia, foge para Londres, onde permanece dois anos. Na capital inglesa, a perícia adquirida em Paris rende-lhe bastante dinheiro, que no entanto gasta em mulheres e jogo – ao menos não fez como W.C. Fields, que desperdiçou metade. De volta à França, é tomado por um inesperado sentimento de empatia e decide abdicar da criminalidade em benefício de uma vida comum e honesta. Porém, sucumbe à primeira tentação e é por fim travado pelas autoridades. No final, a alvitrada redenção pelo amor é ambígua. O que é exposto ao longo do filme, e um pouco por toda a obra de Bresson, é a progressiva perda da substância espiritual que nos mantém minimamente civilizados e unidos. Além do mais, Michel é tão apático, tão desinteressado nas diferenças entre o bem e o mal, que mais parece padecer de uma qualquer psicopatologia dissociativa sem remissão. Ambivalências à parte, o final de Pickpocket deixa-nos uma das grandes frases da História do Cinema, «Oh, Jeanne, que estranho caminho tive de percorrer para chegar até ti», apropriadamente citada por um alucinado – e muito lúcido – João César Monteiro em As Bodas de Deus (1999).

O cinema de Theo Angelopoulos, como o de Bresson, versa personagens alienadas, incapazes de se ligarem ao mundo e à trivialidade dos dias, perdidas numa dimensão estranha onde se sobrepõem o passado, o presente e o mito. Mas se os filmes de Bresson gravitam em torno do conceito de redenção, os do grego Angelopoulos têm como tema a reconciliação. Veja-se A Eternidade e um Dia (1998), por exemplo, uma das suas últimas obras.

O filme apresenta-nos um poeta, Alexander, no derradeiro dia da sua vida. Numa das primeiras cenas, encontramo-lo a levantar-se da cama e a preparar-se para ir ao hospital, onde, percebemos, será eutanasiado (eufemismo que hoje está para os homens como o «pôr a dormir» tem estado para os animais). Alexander tem uma doença terminal, sofre, e, apesar de ter uma filha, está só. A sua única ligação com o mundo exterior estabelece-se por meio de um diálogo musical com um vizinho sem nome e sem rosto. Na tensão entre razão e revelação, a música assume o papel de intermediário comprometido com o imaterial.

Enquanto passeia junto ao mar acompanhado do cão, conversa, na sua imaginação, com a falecida mulher: «O meu único arrependimento, Anna, é não ter terminado nada. Tudo o que deixei são esboços, palavras gastas aqui e ali.» Diante da morte, o que mais lamenta é a insuficiência da sua produção literária. Se pudesse negociar com o diabo, talvez pedisse alguns meses para acabar o que deixou inconcluso (que nunca se acaba). Mas as horas que se seguem e um encontro inesperado com uma criança albanesa vão forçar Alexander a fazer escolhas morais e mostrar-nos que, afinal, há mais arrependimentos.

No decorrer do dia, o passado e o presente de Alexander associam-se em episódios oníricos. O poeta recorda uma ocasião em particular e revive-a: o dia em que Anna, para celebrar o nascimento da filha de ambos, reuniu a família na casa do casal em frente à praia. Alexander, como sempre, esteve distante, sorumbático, e foi tentando escapar ao convívio sempre que lhe era possível. Anna queixa-se: «Passaste a vida entre livro e livro […] Vivias connosco, mas não estavas connosco.» Descobrimos ainda que, na ocasião da morte do pai, estava ausente: «Estava em Paris a apresentar o meu livro…», desculpa-se. Também aqui escutamos ecos de Mersault.

A dada altura do seu périplo do adeus, Alexander visita a mãe doente, a qual, como ele próprio confessa, já não via há algum tempo, demasiado tempo. Antes de se despedir, pergunta-lhe: «Porquê, mãe? Por que é que nada acontece como nós queríamos? Por que é que temos de apodrecer em silêncio, divididos entre a dor e o prazer? Por que é que vivi a minha vida em exílio? Diz-me, mãe, por que razão não podemos aprender a amar?» O termo «vida em exílio», está bem de ver, não é uma descrição à letra da sua condição. Alexander nunca fora forçado a sair do país ou da cidade. Viveu um exílio social e emocional, apartado de tudo e de todos, mas não, como Raskolnikov ou Michel, em resultado da rejeição da ideia de continuidade entre o passado e o futuro e da descrença nos valores que nos unem num ideal superior.

A disforia de Alexander não aparenta ser induzida pelo niilismo mais puro. Constituiu uma família (ainda que não tenha cumprido o papel que lhe era pedido), tem consciência do passado colectivo, encontra-se despojado de delírios de superioridade e não carece de preocupações metafísicas nem da propensão muito humana para idealizar algo maior do que a soma dos pequenos fenómenos. Pelo contrário, procurou sempre um plano superior, pairando sobre a banalidade do dia-a-dia, vogando, como alguns peixes, no sentido contrário ao fluxo natural, em busca de uma origem, de uma história perdida, dos mitos que nos unem. É um Príncipe de Salina nascido depois de tudo mudar (e de nada ficar igual) e que agora passeia o seu desespero existencial por entre as ruínas deixadas pela passagem da onda histórica.

A última cena decorre durante a reunião de família que Alexander recordara, e à qual ele regressa, talvez para fazer, postumamente, uma última vontade à mulher: «Eu sei que não gostas», pede-lhe ela, «mas dança comigo». E finalmente, na iminência da morte, Alexander reconcilia-se com a vida e com os outros, enquanto a urgência do suicídio se desvanece nessa religação com a beleza das trivialidades terrenas. «Primeiro, Deus criou a viagem, depois veio a dúvida e a nostalgia», diz o protagonista de outro filme de Angelopoulos (O Olhar de Ulisses, 1996). No fim da viagem, Alexander põe tudo em causa, apercebe-se de que deixou uma Tróia em chamas atrás de si e regressa enfim a Ítaca. «Sábio como [é] agora, senhor de tanta experiência, [terá] compreendido o sentido de Ítaca» (Kavafis): a última paragem de um exilado, término de uma jornada circular que se fecha sobre si mesma e de onde já não poderá voltar a partir.

Não se trata, longe disso, de um final feliz. Duvidamos até que Alexander, na eventualidade de ver[1]se diante do milagre de um novo começo, percorresse um caminho muito diferente. No documentário Encounters at the End of the World (2007), Werner Herzog filmou um pinguim que súbita e inusitadamente se afasta da colónia em rumo das montanhas e do desolado continente antárctico, onde só o espera a morte. A intervenção humana está interdita, mas seria escusada: o animal voltaria a pôr-se em fuga. Um plano, magistralmente filmado, dá-nos a ver o comportamento desconcertante do animal, a sua implacável solidão na paisagem magnífica, e empurra-nos para aquele terror metafísico que o sublime costuma desencadear. «Mas porquê?», pergunta, atónito, o narrador.

O pinguim de Herzog ficou conhecido como o pinguim niilista. Postos a antropomorfizar o bicho, cabe aqui propor outra leitura: a do pinguim místico que já não suporta viver exclusivamente no presente – como vivem todos os animais –, e que, à vulgaridade de uma existência assim traçada, bem como ao convívio da sua espécie, prefere as majestosas paisagens polares, para onde se encaminha, num decisivo exercício de liberdade.

O mesmo se passa com Alexander, sozinho, estranho a uma sociedade apressada e guiada pelo efémero, que prefere os filmes de Hollywood, com os seus planos de duração média de quatro segundos, aos planos-sequência de cinco minutos de Theo Angelopoulos. Já pouca gente está disposta a ver, no sentido mais contemplativo do termo. «Como será a morte?», pergunta Ravelstein, no romance homónimo de Saul Bellow. «As imagens acabam», responde Chick/Bellow. Na morte de uma cultura as imagens não acabam. Ao invés, sucedem-se a um ritmo alucinante. Afinal, não dizem que no momento da agonia vemos a nossa vida a passar-nos diante dos olhos?

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/04/28, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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