Os verdadeiros liberais

Ricardo Dias de Sousa                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           .

Confesso que não prestei muita atenção ao Congresso da IL. Há muito tempo que o que por ali se propõe tem muito pouco a ver com o que eu defendo e, se aquilo é o que passa por Liberalismo nos dias de hoje, tanto pior. No entanto, fui sendo chamado à atenção para algumas das intervenções mais acaloradas de alguns militantes que, apoiando maioritariamente a lista vencedora, desejavam ardentemente purgar do partido os “conservadores”.

Não ignoro que isto se trata essencialmente de chicana política. Que ao crescer junto do eleitorado, a IL se vai parecendo cada vez mais aos partidos do establishment, quer dizer, da tasca. A estratégia de comunicação passava por colocar uma etiqueta ao adversário, neste caso “conservador”, repetir essa etiqueta até convertê-la em verdade absoluta, para a partir daí se poderem autoproclamar como os únicos e verdadeiros liberais. Para a jogada ser convincente é necessário que os que a defendem sejam os primeiros em acreditar, sem hipocrisia. Não é por isso de estranhar o tom frequentemente fanatizado daqueles que subiram à tribuna a acusar os seus adversários do crime de “conservadorismo”. Julgo que, na maioria dos casos, não existia por parte destes oradores, muito jovens a maioria deles, nenhuma hipocrisia. Estavam verdadeiramente convencidos de que o conservadorismo é um mal a erradicar, senão do mundo, pelo menos do próprio partido. E é por isso que, apesar do riso que a cassette partidária inadvertidamente provoca em qualquer pessoa que não esteja infectada com o vírus da partidite aguda, também fica uma reverberação sinistra. Um eco que terá levado a que muitos simpatizantes do partido a genuinamente perguntar-se: então um liberal não pode ser conservador?

Obviamente que sim, muitos pensaram rapidamente, serenando o seu próprio ânimo. Afinal de contas, o Liberalismo defende a liberdade de cada indivíduo para perseguir o seu projecto de vida. Defende a sua felicidade sempre que esta não coarte a liberdade dos outros. Neste caso, um indivíduo pode perfeitamente estabelecer que, para si, o mais importante é o seu Deus, a sua pátria e a sua família e, sempre que não imponha aos outros curvar-se perante a sua verdade, ser verdadeiramente liberal. Este é um raciocínio com o qual nenhum dos presentes na Convenção poderia realmente estar em desacordo sem arriscar uma contradição lógica. Isto acreditando que os que subiram ao estrado são capazes de seguir o raciocínio, momentos houve em que tive dúvidas. Mas a questão não é exactamente essa. A questão é se os princípios dos conservadores estão em sintonia com os dos liberais, permitindo que uma pessoa seja simultaneamente conservadora e liberal. E a opinião daqueles militantes que hoje em dia mandam na IL é um rotundo não.

Há que dizer que, à primeira vista, estão cobertos de razão. O auge do Liberalismo, o governo quase ininterrupto do Partido Liberal na Inglaterra da segunda metade do séc. XIX, demonstra-o de forma cabal. O partido de Gladstone converteu a Grã-Bretanha na superpotência da época e o Partido Conservador era a principal força de oposição. Mais recentemente, Friederich Hayek, provavelmente o intelectual mais conceituado do Liberalismo no séc. XX que, acredito, ainda tenha algum peso no seio da IL (resta saber por quanto tempo), escreveu um famoso ensaio a explicar porque é que não era conservador, como que a recordar que os liberais não são conservadores e, como tal, estes últimos fariam melhor em procurar o seu próprio partido. E, no entanto…

Deixemos de lado o facto, obvio por outro lado, que a principal lista opositora nunca se declarou como “do conservadorismo”, apenas foi acusada de o ser. Ao invés, recordemos um pouco a história do Liberalismo, que surgiu em França nos alvores do séc. XIX, como reação aos excessos, primeiro da Revolução Francesa e depois do bonapartismo (que inicialmente apoiaram). É verdade que os liberais também se rebelaram contra a aliança entre o Trono e o Altar, que restaurou a monarquia em França passados os ímpetos revolucionários e bonapartistas, mas os argumentos liberais originais não se basearam em noções futuristas de evolução e desenvolvimento social, mas em cartas, foros e ordenanças do passado pré-absolutista, muitas delas, como a Magna Carta, originárias da Idade Média. Foram estes os argumentos que esgrimiram nas disputas políticas, o legítimo contrato social entre os reis e os seus povos, onde se plasmaram os direitos dos indivíduos. Quando os liberais hoje em dia invocam Locke, Condillac, Turgot, Smith, Payne ou Wollstonecraft como seus antecessores ideológicos ignoram que essa tradição foi tecida a partir de Benjamin Constant, Madame de Stäel, La Fayette, e Thierry, os verdadeiros inventores do Liberalismo, que encontraram as verdades que proclamavam nesses e noutros autores que os antecederam. Na sua gênese, o Liberalismo invocou não a marcha inexorável do progresso, mas aquelas tradições e costumes anteriores ao racionalismo, tanto de absolutistas como de revolucionários, dos quais razoavelmente desconfiavam. O próprio Hayek, quando confrontado com a dificuldade em definir-se como liberal, decidiu-se pela denominação de Old Whig, quer dizer, sentia afinidade intelectual com aqueles indivíduos que durante os séc. XVII e XVIII foram estabelecendo a primazia do Parlamento sobre a Coroa e inadvertidamente colocaram os baluartes impediram uma Revolução Francesa na ilha, mas que não se podem considerar de nenhuma forma como pertencentes a nenhum partido liberal como os conhecemos hoje.

Para além disso, é necessário não esquecer que os amigos se conhecem nas horas difíceis. Se no Reino Unido era relativamente fácil para o Partido Liberal ter como adversário político os conservadores, dada a ausência de correntes revolucionárias, o mesmo não aconteceu em França onde três grandes revoltas políticas assolaram o país em 1830, 1848 e 1871. Durante os três sangrentos episódios, os liberais, colocados entre a espada revolucionária e a parede conservadora, escolheram sempre esta última como refúgio, algo que para alguém como o Francisco Louçã representou uma traição ao Liberalismo. Se Louçã considera aliar-se com os conservadores uma traição, eu desconfio do que fiz, e é com alguma preocupação que vejo alguns liberais afinar pelo mesmo diapasão. Hayek não tinha dúvidas. Quando confrontado com a escolha entre socialistas e conservadores escreveu:

“Num momento em que a maior parte dos movimentos que se dizem progressistas defendem aumentar ainda mais a usurpação das liberdades individuais, é mais provável que aqueles que apreciam a liberdade desenvolvam a sua actividade na oposição. Nisto vão encontrar-se frequentemente na companhia daqueles que habitualmente resistem à mudança. Hoje em dia, nos assuntos de política corrente, não têm opção que não seja apoiar os partidos conservadores.”

Eu diria que desde então a situação não melhorou, pelo contrário. E ao contrário do marasmo socialista que governa o país, os conservadores modernos pelo menos reclamam como suas as ideias de Tocqueville, Acton ou Burke, ainda que nenhum destes se considerasse como um conservador no seu tempo. Isto também no-lo reorda Hayek, num texto que os jovens liberais da IL parecem não ter lido mais além do título.

Mas se o conselho de Hayek continua actual, em particular num país onde o Partido Socialista conseguiu, em duas décadas, maniatar o empreendedorismo e congelar a ascensão social, colocando-se no centro de todas as decisões políticas e económicas relevantes para a vida dos cidadãos, é mais preocupante constatar que a principal razão que levou Hayek a não ser um conservador é a que leva os jovens da Iniciativa a abraçar o Liberalismo. Escreveu Hayek:

“Quando digo que o conservador não tem princípios, não quero sugerir que não tenha convicções morais. De facto, o típico conservador é geralmente um homem de fortes convicções morais. O que quero dizer é que ele carece dos princípios políticos que lhe permitiriam trabalhar com pessoas com valores morais que difiram dos seus para construir um ordenamento político em que ambos possam obedecer às suas próprias convicções. O reconhecimento de tais princípios é o que permite a coexistência de diferentes conjuntos de valores e torna possível a construção de uma sociedade pacífica com o mínimo uso da força. A aceitação de tais princípios significa que aceitamos tolerar muita daquilo de que não gostamos.”

Admito que esta carapuça possa servir actualmente a muitos conservadores, mas não posso deixar de pensar que assenta como uma luva na cabeça de muitos dos que subiram ao estrado no passado fim-de-semana.

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